Histórias da CART 3503

Para denunciarmos, para perdoarmos, mas para jamais esquecermos!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009 | 01:07

Como eu me Enganei

Janeiro de 1971, dia 12. Quatro rapazes num mini que foi reparado para esse fim, arrancaram da nossa terra com destino ao serviço militar.
Chegados ao destino por volta do meio-dia, almoçamos num restaurante cá fora e só entramos no quartel por volta das três da tarde, onde nos foi dada a farda que tinha um cheiro a naftalina que só desapareceu quando no ultramar deixei de ser checa.
Passados estes anos todos, ainda recordo aquele primeiro dia de tropa, onde á noite deitado na cama a olhar para as telhas da caserna iluminadas com a luz de plantão, e com os olhos em lágrimas, a perguntar a Deus se iria sair dali com vida e inteiro. Foi uma pergunta sem resposta, mas conforme o tempo ia passando, ia-me convencendo que sim. Mas por vezes, e muitas, pensei que não.
A recruta foi feita, deram-me a categoria profissional de atirador de infantaria, e fui destacado para Tavira, para o velhinho quartel da Atalaia CISMI; aí reparei que além de outros rapazes da minha idade, havia um que estava a fazer justamente o mesmo percurso que eu, era o Camões, isso veio a confirmar-se porque dali fomos para Aveiro dar recruta, embora ele tenha ficado cá em cima no R.I.10 e eu lá para baixo para o 5 onde não havia chicalhada, e por isso mesmo, andávamos mais á vontade.
Foi ali, numa tarde de um belo dia de sol que tive conhecimento que estava mobilizado para o ultramar, para província de Moçambique. Um dia de sol que nesse momento ficou negro, mais negro que o negro do luto.
E foi nesse instante também que pensei: - Bem, deve ser melhor que ir para Angola ou Guiné, porque não se fala tanto. Mal eu sabia o que me esperava.
Após a instrução, e com a ordem do dia cá fora, fui procurar os outros companheiros para saber qual a situação deles, que não era melhor que a minha, pois estávamos todos mobilizados para as províncias ultramarinas. E mais uma vez o Camões iria fazer o mesmo percurso que eu pois íamos apresentar-nos no mesmo quartel em Penafiel, com destino a Moçambique, pertencendo ao mesmo batalhão, embora não à mesma companhia.

Mais tarde fomos para Viana do Castelo, ou seja para o velhinho quartel da Barra, e foi o que se passou aí que deu origem a esta minha recordação e a este texto.
Estávamos a 7 de Janeiro do ano 1972, com o embarque marcado para o dia 9 e eu de serviço, sargento de dia à companhia, na C.ART. 3503. Na C.ART.3501, o Camões e na C.ART. 3502, o Pinto. Era perto da hora de jantar, um deles veio ter comigo, e perguntou se depois do recolher, eu alinhava em nos desenfiarmos de comboio para o Porto, que era ás 11 da noite, e vínhamos no da uma ou duas da manhã, não me recordo. Agora também me recordo que quem também alinhou foi o que estava de sargento da guarda, que deixou tudo controlado porque aquela era a última noite que iríamos passar ali, a seguinte seria passada no comboio em viagem para Lisboa, para embarcarmos para o ultramar no paquete Niassa.
Tudo correu às mil maravilhas, e assim nos vimos dentro do paquete Niassa. Quando este desatracou do cais, quem estava numa das suas repartições acenando para os familiares num adeus e até breve? O Caseiro, o Camões, o Pinto e o grande amigo do Camões, o Candeias, e o motivo que nos levou a estarmos todos juntos mais uma vez, foram os comentários sobre a noite anterior no Porto, porque no comboio não tinha dado para falar.
E num desses momentos a acenar às famílias eu disse em voz alta:
- ESTAI DESCANSADOS QUE VAMOS REGRESSAR TODOS SÃOS E SALVOS!
Pois, caros amigos, como eu me enganei: o Pinto, passados cinco ou seis meses, ficou sem um pé; o Camões faleceu passado ano e meio de lá estarmos, e de uma maneira que só de pensar até me arrepio; o Candeias, a faltar poucos dias para os dois anos de lá estarmos também faleceu, foi um dos que morreram no dia 1 de Janeiro de 1974, quando levavam o pão ao pessoal da C.ART. 3503, que estava nas Bananeiras.
Dos quatro, só eu posso dizer que regressei são e salvo, com a graça de Deus, e vos digo como é tão fácil a gente enganar-se quando pensa ou imagina saber o destino de cada um.
A estes ex. companheiros e outros que também faleceram aqui lhes presto a minha homenagem.

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3 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Gostei do texto.Sou um visitante assiduo do blog.Olá Joaquim Santos.
Estive em Mueda (67/68)e não me lembro de ouvir falar nas "bananeiras".Já li, não sei onde, que seria na estrada das águas.Será
Um abraço
José Monteiro
http://br.geocities.com/batalhaocacadores1916/index.html

2 de março de 2009 às 18:27  
Anonymous Anónimo disse...

...eu estive lá, com o Silvestre...e, o ataque que os homens de Nancatari sofreram, estava-me destinado...António P. Almeida, último capitão da 3503

2 de setembro de 2009 às 16:45  
Blogger jorge pinto disse...

Passados tantos anos resolvi procurar algo sobre a minha ida para Moçambique e deparei com este texto onde se fala de duas pessoas que conheci muito bem. O Camões e o Candeias, dois seres humanos maravilhosos que desapareceram numa guerra fratricida e sem nexo, e com os quais convivi em Nancatari. Ah como recordo pelas piores razões, esse dia fatídico dia 1 de janeiro de 1974...

Jorge Pinto

13 de março de 2019 às 23:01  

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