Histórias da CART 3503

Para denunciarmos, para perdoarmos, mas para jamais esquecermos!

segunda-feira, 3 de junho de 2013 | 20:59

FOTOS EM ATRASO ( Almoço em Aguim)

A todos os companheiros que estiveram presentes em Aguim, e que encomendaram fotografias, o fotógrafo faz saber que o atraso das fotos se deve ao encerramento da  estação dos Correios de Celas-Coimbra, local de onde as expediu por correio registado.
Pede desculpa por este contratempo,  embora lhe  seja alheio, e solicita que aguardem mais um pouco.

quinta-feira, 7 de março de 2013 | 19:15

Convívio da CART 3503



Companheiro,

No dia 27 de Abril teremos mais uma operação para a qual estamos todos convocados.

Confirma até ao dia 20 de Abril e indica quantos convidados trazes.
TLM: 965267018
e-mail: mancbastos@hotmail.com


Todos os elementos da Cart 3503 devem aparecer na formatura na hora e local abaixo indicados devendo para isso vir devidamente municiados de camaradagem, amizade e espírito de sã convivência.

Data e Hora da Formatura: 27 de Abril de 2013 pelas 11H30


Local da formatura: Aguim

                                                GPS – N: 20º 24' 56,41"
                                                         O: 8º 26' 54,98"

Na picada A1 sai para a Mealhada e segue na picada Nacional 1 em direcção ao Porto. Sai da Nacional 1 para Aguim até ao Largo da Capela. As viaturas devem estacionar nas ruas vizinhas. O serviço religioso terá lugar imediatamente.

Operação: formar-se-á a coluna após o serviço religioso que se dirigirá ao objectivo pela picada da Rua do Barreiro até ao cruzamento com a picada Nacional 1, onde deve haver o maior cuidado com as viaturas do IN que poderão aparecer a alta velocidade.
A progressão para o objectivo deve ser efectuada conforme a carta militar e fotos abaixo.
A picagem de todo o percurso é efectuada por um moderníssimo processo de telepatia que dispensa que andemos de pica na mão.

Chegada ao objectivo às 13H00 – Restaurante "O Sancho"


                                                 GPS - N: 40º 25' 03,20"
                                                          O: 8º 17' 27,21"
Ração de Combate:
Entradas variadas
Sopa de legumes
Filetes com Arroz de legumes
Leitão
Espumante bruto São Domingues
Vinho Maduro Tinto e Branco, Verde e Frisante
Água e Sumos
Pudim ou Salada de Frutas e Bolo de Aniversário
Café e Digestivos


Preço: 25 € (crianças menores de 4 anos: grátis; de 4 a 10 anos: 15€)


Para chegar a Aguim a partir da Autoestrada:

Percurso:
Ponto A - Saida da A1 para a Mealhada
Ponto B - Aguim (Missa)
Ponto C - Restaurante

Sai da A1 para a Mealhada e segue no sentido do Porto 
Segue na Nacional 1 até Aguim
 
(Animação do Google Hearth)




Abandona a Nacional 1 para Aguim até ao Largo da Capela onde se celebrará a missa


Depois da Missa regressa à Nacional 1
(Animação do Google Hearth)

e segue em direcção ao Porto durante 150 mts

Sai da A1 para o recinto do restaurante

Restaurante "O Sancho"

Bom convívio e bom apetite!!!


sábado, 21 de janeiro de 2012 | 00:07

Bananeiras

As Águas - Mueda
Foto retirada daqui e posteriormente editada.

Dizia o Furriel Manuel Bastos, e digo eu, furriel na guerra, furriel para toda a vida, num seu recente texto, publicado no “site” Cacimbo, que “nunca regressamos de África”.
É verdade, de África e da Guerra, tomo a liberdade de acrescentar.
Precisamente, por estes dias finais de mais um ano, já lá vão 38, Mueda fervilhava de agitação, preparando um mega-almoço, especialmente abastecido por uma aeronave propositadamente contratada para o efeito, vinda de Nampula, bem carregada de comes e bebes, que reuniria no 1º dia do ano de 1974 as designadas figuras militares, politicas, sociais e religiosas, de Lourenço Marques e de Nampula.
Pretendia-se com a realização de tal evento mostrar ao mundo que Portugal estava bem presente naquelas paragens, ao contrário do que os jornais, estrangeiros, claro, noticiavam, acerca da luta travada no terreno.
Aproximava-se, pois, o fim do ano, com o Natal já passado, e eu ainda a recuperar do paludismo que me havia atirado para a cama uns dias antes da noite de consoada.
Felizmente, até então, não havíamos sofrido o sempre esperado ataque dos “terroristas”, o que fazia antever um possível bombardeamento pela entrada do novo ano, já que dificilmente escaparíamos á tradição das boas vindas que por esta altura do ano a FRELIMO sempre presenteava as forças portuguesas, naquelas paragens.
E, eis que, ainda abalado pela crise de paludismo, fui chamado ao comando, onde me foi comunicado que, uma vez que tinha já alta médica, fora nomeado, aliás, como a companhia 3503, para comandar uma coluna, responsável pela protecção a uma obra cometida à engenharia.
Exactamente, foi-me comunicado, melhor, ordenado, que a partida da coluna seria na manhã do dia 31, isto é, no último dia do ano.
A Cart 3503, além do capitão e responsável pela operação, forneceria um alferes, que calhou ser o Silvestre, dois ou três furriéis e uns vinte e poucos soldados. O restante pessoal seria da engenharia.
A Cart 3501, de Nancatary, enviaria ao nosso encontro um número idêntico de homens, que se juntariam a nós como reforço á operação com vista à construção de uma ponte, nas Bananeiras, assim se designava aquele local, no meio do mato, sobre um pequeno riacho, que substituiria uma outra há muito destruída pelos guerrilheiros e por onde era suposto passar uma coluna de abastecimento, vinda de Nampula.
A escolha do alferes Silvestre, pese a sua recente alta médica, decidida no Hospital de Nampula, culminando um processo de tratamento e recuperação demorado, após violentos ferimentos sofridos, que o colocaram às portas da morte, muitos meses antes, dizia, a sua escolha para me acompanhar resultou de uma pequena reunião entre nós os dois e o outro alferes da companhia, o Silva, por todos tratado por Silvita.
Face à necessidade de nomear um deles, vi-me perante um dilema, tomar uma decisão entre um, o Silvestre, que não se entendia como era possível, atento os graves ferimentos sofridos e o calvário que passou pelos hospitais, incluindo com evacuação para Portugal e, agora regressado ao mesmo teatro de guerra, por um lado e, por outro, o Silvita, que vinha, quase ininterruptamente, assegurando a realização das operações que a companhia era permanentemente obrigada a realizar, sem que estivesse dotada dos meios humanos mínimos para tal, não só de oficiais como de soldados.
Então passei-lhes “a bola” e eles que decidissem entre ambos qual seria o que me acompanharia na operação. De imediato, o Silvestre disse que teria de ser o capitão a escolher. Também, sem perda de tempo, decidi que seria ele próprio a participar na coluna.
Os demais militares que ficavam em Mueda, fossem os “aramistas”, ou o que restava dos atiradores, também decidiram que não participariam no previsto mega-almoço, e dessa forma solidarizavam-se com aqueles que partiam para o mato.
Para o efeito, de modo a evitar represálias, uns juntar-se-iam ao grupo de soldados que estacionavam no acampamento instalado no aldeamento, e os restantes iriam para as “Águas”, fora de Mueda, a uma meia dúzia de quilómetros, onde a companhia mantinha um grupo de quarenta militares, que assegurava o abastecimento de água a Mueda.
Com votos, em surdina, de que Mueda fosse atacada na nossa ausência, lá partimos para as Bananeiras. Berliets carregadas com os soldados e material necessário a uma estadia que se previa de vários dias, além de toda a maquinaria da engenharia.
Pequena paragem na picada, no desvio para as Águas, onde largámos dois graduados da companhia de engenharia que, por maldade, haviam sido integrados para realizar aquela operação, apesar de terem chegado a Mueda, vindos de Portugal, dois dias antes. Estavam assustados, como era normal, para quem pela primeira vez, e mal acabados de chegar, se viam numa situação daquelas. Entre risos e bocas foi-lhes explicado que não era mais que o cumprimento de uma, digamos, praxe, que em Mueda se fazia passar aos “chekas”.
Aliviados ficaram nas Águas e nós lá prosseguimos o nosso destino, agora com cautelas redobradas, picando os rodados por onde passariam as viaturas. E, deste modo, ao som dos motores das viaturas em marcha lenta, fomos percorrendo a picada que ligava Mueda a Nancatary, via Águas e Bananeiras.
Relativamente perto das Bananeiras deu-se o reencontro com os homens vindos de Nancatary. Assim, suspendemos a picagem, já que a picada acabara de ser passada pelos recém-chegados de Nancatary, e mais aceleradamente, já todos quantos iriam assegurar a construção da ponte, rolamos para o local determinado que uma vez atingido, e porque naquelas paragens anoitecia muito cedo, toca a derrubar umas quantas árvores, de modo a melhor instalar o acampamento, atentos todos os dispositivos de segurança.
A queda de uma das árvores acabou por despoletar um enxame de abelhas, que rapidamente se espalhou pelo local tomado pelos militares e começou a atacá-los. O alvoroço de todos e o pânico de muitos, recorrendo a granadas de fumo, às próprias viaturas com os canos de escape a exalar fumos, fugindo para as respectivas cabines ou lançando-se para debaixo das mesmas, foi a forma encontrada para combater um tal “ataque”.
Entre os vários militares picados pelas abelhas um teve mesmo de ser evacuado, atenta a gravidade do seu estado de saúde.
Socorrido por um heli que logo foi chamado de Mueda, o ferido foi evacuado. Logo à chegada, a primeira baixa.
Terminado o ataque das abelhas, que trouxera à memória uma situação semelhante aquando da passagem, exactamente, pelo mesmo local, da coluna que trouxera, em 1972, muitos daqueles homens para Mueda e onde sofreram logo, num ataque, também de abelhas, a evacuação do seu primeiro elemento, um dos alferes, que não voltou mais à companhia. Mau agoiro, pensaram muitos.
Agora, todos ao trabalho, na montagem e organização do acampamento, com especial incidência na manutenção da segurança, porque a tarde apressadamente ia desaparecendo e a noite, a “noite de fim de ano”, rapidamente se aproximava.
Instalados, caída a noite, foi impossível não recordar passagens de ano anteriores, sobretudo algures em Portugal. Os homens da 3503 que haviam carregado algumas bebidas recolhidas na árvore de Natal que tinham “plantado” na sua camarata, por todos fizeram uma distribuição para que ninguém ficasse sem brindar ao ano que nasceria à meia-noite.
Chovia torrencialmente quando bateu a meia-noite e, desde gritos e vivas, a tiros para o ar, enfim, um barulho em pleno mato, impossível de controlar, foi a forma que os militares estacionados nas Bananeiras encontraram para festejar a chegada do novo ano, aliás, que seria o último para os homens da duas companhias de atiradores ali presentes, as Cart´s 3501 e 3503, tirando um ou outro homem que havia chegado em rendição individual, caso do capitão e que ainda estava no princípio da sua comissão, enquanto os demais, sem contar com o mata-bicho, isto é, mais uns três meses, terminariam a comissão nos primeiros dias, exactamente, do mês de Janeiro que estava a nascer.
Assim adormeceram e devido à chuva que caía intensamente durante a noite, o capitão, como um ou outro militar, refugiou-se na cabine de uma das Berliets, onde acabou por adormecer, já bem bebido, confessa.
Manhã cedo, toca a levantar, uma vez que tudo estava devidamente previsto, os homens da Engenharia dirigiram-se para o local onde iriam edificar a nova ponte, melhor, montar um pontão, e os atiradores das 3101 e 3503, prepararam-se para assegurar a defesa do acampamento e a segurança dos trabalhos a executar pelos “engenheiros”.
O capitão, conforme havia já acordado com o alferes Silvestre, organizava um pequeno grupo para ir a Nancatary, sem avisar, de modo a surpreender o capitão Aveiro, com quem mantinha já fortes laços de solidariedade, e comandante das tropas aí estacionadas, para obter produtos que amenizassem as rações de combate que teriam de suportar durante, como era então previsível, mais de uma semana.
Faziam-se os derradeiros preparativos para a partida, quando um forte rebentamento, seguido de rajadas de armas automáticas, fez parar todos os homens do acampamento e, o capitão, menos apreensivo que ninguém, ainda um “cheka” relativamente aos demais militares que o acompanhavam, alvitrou para quem estava próximo:
- Olha o capitão Aveiro a receber as boas festas dos “turras”!
Um soldado a seu lado, um dos tais velhinhos da Cart 3503, prontamente lhe fez sentir:
- Meu capitão, olhe que não, este rebentamento aconteceu a menos de quinhentos metros daqui.
Instantaneamente reagimos e fizemos a aproximação ao local.
Era verdade, melhor, duas verdades, uma, as “boas festas” da Frelimo, eram uma amarga realidade que o capitão Aveiro e alguns dos seus homens acabavam de receber, e a outra, foi muito perto do acampamento que o ataque se registou.
O comandante da CART 3501 adiantou-se ao capitão da 3503 e, sem que fosse esperado, certamente para provocar uma agradável surpresa, vinha carregado com mantimentos, apoiar quantos se encontravam naquela missão.
Assim ficaram pelo caminho quatro rapazes, na casa dos vinte anos, e que terminariam a sua comissão de serviço, daí a alguns dias, se não tivessem sido abatidos.

Lisboa, final de 2011 e começo de 2012

António Pereira de Almeida, último capitão da CART 3503

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domingo, 11 de setembro de 2011 | 21:41

Crónica de uma operação falhada


Mueda, Moçambique. São quatro da manhã, terça-feira, dia 21 de Março de 1972. O Raimundo acorda, desliga rapidamente o despertador. Senta-se na cama e lentamente roda-se e coloca os pés no chão. Calmamente levanta-se vai até à casa de banho onde faz a sua higiene matinal e volta para o quarto e aproveita para chamar o Cristo, o Vences, o Ribeiro e o Ventura, dizendo-lhes que está na hora de por a pé. Na outra flat, àquela hora levantavam-se, igualmente, os Furriéis Caseiro, Silvita e Bastos.
Enquanto os colegas tratam da sua higiene matinal o Raimundo pega na sua mochila e confirma que está tudo em ordem. Pega depois no bornal donde retira uma embalagem de leite achocolatado e aproveita para tomar o seu pequeno-almoço composto desta embalagem de leite e de uma sandes de queijo. Queijo que ainda restava da remessa que tinha levado aquando do embarque em Lisboa em Janeiro. Após este repasto, olha minuciosamente os carregadores, repletos, mete-os nas cartucheiras que coloca à cintura, mochila às costas, bornal preso ao cinturão, tal como o cantil e G3 na mão. Diz até já aos seus camaradas, caminha em direção à Companhia, mais propriamente à caserna onde os soldados dos três pelotões se começavam a preparar para mais uma operação.
A operação em causa era nem mais nem menos do que o assalto à base Nampula e tinha como objectivo a captura dos morteiros que o In ali dispunha e com os quais fustigava inusitadamente as nossas tropas. Tinha sido no dia anterior cerca das quatro da tarde que o Capitão Azevedo tinha chamado o Raimundo ao seu gabinete em que lhe disse “amanhã vamos para uma operação de dois dias, vamos levar os homens disponíveis, pelo que chame todos os graduados dos 3 pelotões e encontramo-nos todos às cindo da tarde aqui. Entretanto, verifique na arrecadação com o Aníbal as rações de combate e ele que vá preparando as necessárias para distribuição”. Assim foi feito. O Raimundo tratou de passar a palavra aos outros furriéis para que estivessem no gabinete do Capitão às cinco e foi até à arrecadação dizer ao Aníbal que preparasse cerca de 200 rações de combate para distribuição depois do jantar.
A reunião em causa serviu para o Capitão fazer o ponto da situação e para atribuir tarefas sendo que cada um dos participantes conhecia perfeitamente o que tinha a fazer. Diga-se que por razões que a guerra ditou a Companhia apenas dispunha de três oficiais, o Capitão, o Alferes Silvestre e o Alferes Barreiros. Assim, tinha sido acordado que em cada operação que se desenrolasse apenas participaria um oficial, o qual seria coadjuvado pelos furriéis dos pelotões envolvidos em casa operação. Calhou desta vez a sorte ao Capitão Azevedo, o qual depois de explicados os contornos da operação e como presumivelmente se desenrolaria deu por encerrada a reunião sem que antes dissesse ao Furriel Raimundo para ficar porque necessitava de articular com eles alguns dos aspectos focados. Acontecia que o Furriel Raimundo era o mais antigo de todos os furriéis operacionais pelo que na presente operação seria ele o substituto do Comandante sendo necessário tomar conhecimento de todo o plano operacional para fazer face a qualquer eventualidade. Foi isso que aconteceu, tendo o Capitão explicado detalhadamente alguns pormenores que não tinham sido “públicos” na reunião.
Cerca das quatro e quarenta e cinco minutos da manhã, num breve encontro do Capitão e dos oito furriéis presentes recapitulou-se tudo o que era necessário fazer, após o que cada um dos furriéis se dirigiu ao seu grupo de combate tendo em vista a partida para a operação, sendo que a Companhia seria autotransportada cerca de cinco quilómetros. Tudo em ordem, viaturas prontas, pessoal acomodado nas berliets. Foi dada ordem de partida quando a manhã começava a raiar.
A viagem dos cerca de cinco quilómetros demorou cerca de meia hora, tendo terminado junto do antigo posto da água XXX, sendo o restante percurso feito a pé. Saltar das viaturas, ter cuidado onde pisar e preparar para a arrancada a qual iria ser feita pela mata já que não era seguro seguir picada. Toda a gente ainda tinha bem presente a mina que havia, cerca de 3 semanas antes, ali bem perto, ao lado daquela mesma picada, esfacelado o pé do Cabo Correia, pelo que o cuidado, a atenção e por que não dizê-lo a tensão eram evidentes. Cerca das seis da manhã, inicia-se a marcha pela mata, em fila de pirilau ou indiana como era hábito chamar-se, esticando ou encurtando consoante a fisionomia do terreno que palmilhavámos, com o pelotão do Furriel Raimundo à frente. A manhã estava fresquinha e o orvalho existente na vegetação ia penetrando pelo camuflado, mas o sol começava a raiar tornando aquela caminhada silenciosa em algo surreal, pois ninguém dizia fosse o que fosse, e a coluna movimenta-se como sombras ora mais rápida em campo aberto ora mais lenta em zona densamente arborizada ou com muito capim. Cerca das sete da manhã a coluna parou. Que aconteceu, perguntam lá de trás, nada, responde-se da cabeça da coluna, apenas temos um milheiral pela frente. O Tubarão, elemento que seguia na cabeça da coluna ao sair de uma zona arborizada depara-se com uma plantação de milho de grande extensão e parou. Chamou o Raimundo à frente o qual observou o milheiral que teria forçosamente mais de dois metros de altura e concluiu que o melhor para seguir em frente era atravessar a plantação, solução que foi aprovada pelo Capitão e a marcha seguiu. A companhia esteve toda dentro do milheiral e cerca de 100 homens em fila indiana ainda representam uns bons metros podendo-se aquilatar por aqui a extensão daquela plantação. À medida que iamos avançando no atravessamento do milheiral começamos a distinguir uns sons os quais estavam cada vez mais próximos e que eram nada mais nada menos do que vozes de homens conversando animadamente. Feita a respectiva transmissão para a traseira da coluna, no sentido de haver o máximo cuidado e evitar todo e qualquer barulho fomo-nos aproximando do fim do milheiral. Quando a cabeça da coluna aí chegou, Raimundo e Tubarão pararam, agacharam e mediram a envolvência. A mata desenrolava-se novamente a cerca de cinco-dez metros do fim da plantação do milho, pelo que haveria de se ter o maior cuidado na travessia do campo descoberto. À esquerda do local onde atingimos a orla do milheiral havia uma espécie de banca, com alguma dimensão, repleta de abóboras e outros produtos agrícolas que certamente estavam ali a secar. As vozes ouviam-se mais para a esquerda dessa banca, mas deveriam estar a uma distância relativamente curta tal a nitidez com que se chegavam até nós.
Com o máximo cuidado mas também com a rapidez possível numa situação daquelas embrenhamo-nos na mata tendo toda a coluna feito a transposição sem qualquer problema. As vozes iam agora desaparecendo aos poucos e poucos. E também pouco a pouco a companhia foi avançando na mata rumo ao objectivo. O sol começa a apertar e o ritmo da marcha abrandava um pouco. Perto da oito da manhã chegamos ao local onde em tempos, por altura da operação Nó Górdio, tinha estado estacionada uma bateria de artilharia, pelo que aproveitando o local, foi dada ordem de paragem para descansar. O pessoal espalhou-se pelo terreno, aproveitando os “buracos” dos obuses ou estendendo-se ao longo de um trilho que ali passava, e enquanto uns apenas descansavam outros comiam, outros dormiam ou pelo menos tentavam e outros ainda, escondendo-se nas traseiras de qualquer árvore ou arbusto ali existente satisfaziam as suas necessidades fisiológicas. O local onde tinham estacionado os obuses era, como não podia deixar de ser, uma clareira, onde apenas alguns arbustos e capim tinham crescido naquele espaço, pelo que dada a sua largueza foi aproveitado pelo Capitão e pelos furriéis para fazer uma breve “reunião” tendo em vista o ponto de situação, finda a qual cada um voltou à sua posição.
São cerca das dez da manhã. De repente ouve-se um burburinho e alguém grita “fogo”. Todo o mundo no chão, arma aperrada e toca a apertar o gatilho. A coisa durou alguns segundos até que alguém novamente grita “pára”. A guerra tinha parado. O Raimundo foi lá à frente saber o que tinha acontecido e pasme-se. Então mesmo ali ao nosso lado, no trilho que desembocava na clareira, à sombra duns arbustos, dormia um caçador, que ao despertar da sua soneca deparou com a rapaziada ali mesmo à sua beira e não olhando para trás iniciou uma corrida deixando ali a prova da sua presença, um saco feito de pele de um animal, possivelmente gazela, o seu arco e a sua flecha. Apesar do tiroteio que se desencadeou o caçador conseguiu escapar ileso. O Bastos, fez seu o material abandonado e treinou o tiro com arco.
Estávamos detetados quer pelo caçador quer pelo tiroteio. Havia que sair dali o mais rápido possível, tanto mais que o local estava certamente referenciado. Mapa na mão, traça-se o caminho. Seguir o trilho por onde o caçador seguiu. Era uma antiga estrada de terra batida que certamente teria servido de acesso a qualquer fazenda que por ali existiu noutro tempo. Dela apenas restava operacional um trilho, com alguma largura, bem pisado, limpinho, o que evidenciava a sua grande utilização. Companhia em posição de marcha, bicha de pirilau e aí vamos nós com a máxima atenção mas também com uma vontade enorme de nos afastarmos do local onde tinhamos sido detetados. Cerca das onze horas da manhã, bum, bum, bum, ao longe e instantes depois ouvíamos por cima de nós o silvo caraterísticos das granadas de morteiro a passar para cairem pouco tempo depois na zona onte tinhamos estado parados. A morteirada continuou durante cerca de uma hora, sempre da e na mesma direcção. Nós continuamos a caminhada e por volta da uma e meia da tarde, com um sol abrasador, chegámos a uma zona de árvores frondosas, relativamente dispersas, pois no meio fazia uma clareira de alguma dimensão. O Capitão deu ordem de paragem e colocação em posição defensiva. Um grupo, de quatro militares ficou a emboscar o trilho, três ou quatro grupos de três a quatro sodados ficaram de vigilância enquanto os restantes debaixo das árvores e encobertos pelo capim e arbustos ali existentes aproveitavam para comer e descansar. O silêncio era quase absoluto. Estavamos tão dissimulados que a passarada não nos ligava e fazia as suas cantorias. Apenas os sons destes seres se faziam ouvir. Apenas, não é bem assim, porque de meia em meia hora, mais minuto menos minuto ouvia-se “choc”. Era mais uma lata de laurentina que o Capitão acabava de abrir. Seguia-se o mais absoluto silêncio até nova abertura da lata de cerveja, fazendo juz à publicidade da dita “todas as horas são horas de beber uma Laurentina”, lembram-se?
E aqui estávamos nós à espera da hora para nos aproximarmos do alvo quando, de repente uma barulheira e uma correria com uma grande agitação. Tinham entrado dois guerrilheiros na zona de morte da emboscada. Os dois soldados que tinham os guerrilheiros na mira vêem as suas espingardas encravar e quando tentam que os outros atirem fazem barulho e os emboscados com três cambalhotas desaparecem da mira dos nossos soldados. E agora? Olhamos para o relógio e estamos perto das quatro horas da tarde. O Furriel Raimundo vai junto do Capitão e diz-lhe “Meu Capitão, é melhor sairmos daqui.” “Para onde?” retorquiu-lhe o Capitão. “ Para a frente, para trás, para a direita ou para a esquerda, para onde o meu Capitão quiser, aqui é que não podemos ficar, pois eles sabem exactamente onde estamos”. “Deixe estar aqui” sentenciou o Capitão.
O Capitão Azevedo continuava imperturbável. Choc, fumar mais um cigarro, abrir e beber mais uma cerveja, como se nada estivesse a ou para acontecer. O Furriel Vences, várias vezes foi junto dele pedindo-lhe para sairmos dali, mas nada havia que demovesse o Capitão da nossa estada em tão frondoso local. O tempo foi passando e um generalizado mal estar foi-se apoderando de todos. Mais uma vez o Raimundo foi junto do Capitão tentando que ele tomasse uma decisão. Sair dali. Mas nada. Mais um cigarro, mais uma cerveja e tudo bem.
Cinco e meia da tarde. O dia começa a esconder-se. O pessoal estava cada vez mais nervoso. “Choc”. Nisto, ali bem perto, “PUUUM”, “PUUUM”, “PUUUM”, “PUUUM”, todo o mundo a remexer-se e a ficar na expetativa de ver onde é que elas iam cair. Começaram a cair à nossa beira, ali bem perto. O Furriel Raimundo, olha para o Capitão e este diz-lhe Raimundo, vamos, para o local onde estivemos de manhã. O Raimundo preparou o seu grupo de combate, pôs o pessoal em posição de marcha, pediu para verem atrás se estava tudo pronto para seguir, responderam pela positiva e deu ordem de marcha colocando-se à frente da coluna. Caminhados alguns metros vem palavra de trás dizendo que os outros grupos não estavam a andar nem à vista. As morteiradas continuavam a seguir. Parar, disse o Furriel. Toda a gente se agachou no trilho como que a protejer-se das granadas que ali perto continuavam a cair com alguma intensidade. Através do radio AVP1 o Raimundo tentou o contato com o resto da companhia mas nada. Quando nos preparávamos para retroceder eis que aparece o resto da coluna a juntar-se ao grupo da frente. Confirmado que estava toda a gente, iniciamos a marcha utilizando o trilho por onde tinhamos avançado de manhã, fazendo agora o percurso inverso. Lá para trás, cada vez mais longe, as morteiradas continuavam a cair. Fizemos toda a caminhada já no escuro tendo atingido o local onde o caçador dormia, perto das sete da noite. Ali chegados o Capitão Azevedo deu ordem de “acampar”. Íamos passar ali a noite.
Aproveitando o arranjo do terreno, era quase um quadrado, os diversos grupos de combate tomaram posição de modo a assegurar a cobertura completa do mesmo. Instalados e montadas as respectivas seguranças, foi a vez de jantar e adormecer. Durante toda a noite a festa continuou lá atrás. Dezenas de morteiradas cairam por ali. De manhã, bem cedinho, tornou a haver fogo de artifício. Felizmente, para nós, eles convenceram-se que não tinhamos saído da zona da emboscada. Recordo que o local foi abonado ao cair da noite, hora imprópria para deslocações na mata.
Passámos a noite sem outros sobressaltos que não fossem os rebentamentos lá longe e um ou outro “choc” até perto da meia-noite.
Ao romper da manhã ficámos a pé. Logo que possível o Capitão contatou o Comando em Mueda o qual decidiu que face ao termos sido detetados o melhor era dar a operação por terminada, dando ordem de regresso ao quartel. Perto das oito da manhã, iniciámos o regresso, tendo feito a pé o percurso até ao cruzamento da picada Muera-Nangololo, local onde fomos recolhidos por viaturas que ali se deslocaram para o efeito.
Durante essa curta viagem, fomos brindados pela artilharia que disparou com alguma intensidade os seus obuses para posição atrás de nós, pelo que as granadas passavam por cima de nós deixando-nos o seu impressionante e enervante silvo. Desconheciamos a razão de tal bombardeamento. Soubemos quando chegámos ao quartel que a razão tinha sido um avião NordAtlas que havia sido atingido pelos guerrilheiros quando voava a baixa altitude, tendo resultado a morte de um oficial de artilharia que viajava nesse avião.
Perto das catorze horas chegámos ao quartel com alguma frustação. Saltar das viaturas, formar, efectuar as normas habituais de segurança como seja tirar a bala da câmara puxando a culatra atrás. Costuma-se dizer que não há duas sem três. Tinha-nos fugido o caçador debaixo dos nossos olhos, encravaram-se as espingardas quando tinhamos o alvo debaixo de mira, que mais nos havia de acontecer? O Tubarão e o Araújo ao efectuarem aqueles procedimentos de segurança vá lá saber-se porquê, dispararam a arma. Bum, bum.
O Capitão Azevedo fica fulo, mas mais fulo iria ficar quando foi chamado ao Major “Calcinhas” para explicar porque razão as armas disparam quando não devem e encravam quando devem disparar.
Todo o pessoal foi tomar banho e depois almoçar o que ainda lhe restava da saborosa ração de combate que lhe havia sido distribuida. Perto das quatro horas da tarde o Capitão chama o Furriel Raimundo e diz-lhe que reúna imediatamente toda a Companhia na parada recomendando que cada um se apresentasse com a arma que lhe estava distribuida. Assim foi feito. Companhia, ou melhor os três grupos de combate formados na parada é dada a ordem de marcha a caminho do fundo da pista de aviação. Lá vamos nós, um, dois, esquerdo, direito, um, dois, um, dois. Quando chegamos ao lado da pista de aviação é dada ordem de corrida, a qual se mantém até ao fundo da pista, mesmo ao fundo. Lembram-se que a pista ainda era grande e depois dela ainda havia um grande espaço até à ribanceira que dava para o Vale Miteda? Lá bem ao fundo é dada ordem de parar. Recordo que já havia uns atrasados em especial os que transportavam metralhadoras e morteiros. Grupo reunido e palestra do Capitão. Compreende-se. Regresso em passo de corrida até à Companhia, o pessoal já vinha de rastos. Tinha saído no dia anterior às cinco da manhã, percorrido toda a caminhada da operação nas condições em que a mesma se desenrolou e agora uma corrida que ida e volta deve medir uns bons cinco quilómetros, não é brincadeira nenhuma. Chegados ao quartel, formatura e informação que amanhã às nove da manhã, novamente ali formados e devidamente equipados. Estava em perspectiva nova corrida até ao fundo da pista.
Diz-se que o sono é bom conselheiro. No dia seguinte de manhã, antes do pessoal formar, o Capitão chamou o Furriel Raimundo e diz-lhe, “Já chega de castigo, não acha?” “Acho sim, meu Capitão”, respondeu-lhe o Raimundo. “Mande os homens embora”. Assim foi feito.
Não sei porquê, mas o relatório desta Operação não consta da história da Companhia. Mas porque aconteceu e a maioria dos seus intervenientes estão vivos e se recordam dela, é bom lembrá-la nem que seja como o episódio de guerra que se poderia chamar “Armas que encravam quando devem disparar e disparam quando não devem”.


Escrito 39 anos depois dos acontecimentos.

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sexta-feira, 2 de setembro de 2011 | 01:41

A Mulher na Praia

Abril de 1974. Portugal ficou em festa naquele dia 25, mas havia lá longe na ex-província de Moçambique, e já na cidade da Beira, os militares da CART 3503, sem que tivessem a noção do que se estava a passar em Lisboa. Estavam tristes, não por saberem da revolução, mas por terem o embarque marcado de regresso para a Metrópole no dia 26 e assim se verem obrigados a ficar mais uns dias.
Chegamos a Portugal no dia 28 de Abril de 1974, a CART 3503, sendo a primeira companhia a regressar a Portugal após o 25 de Abril. Regressavam agora, não porque a revolução lhes encurtara a comissão mas sim porque a sua comissão tinha sido longa de mais, porque já fazia 28 meses que lá estávamos, e sempre no pior sítio da guerra em Moçambique, sempre em Mueda, distrito de Cabo Delgado.
Já em Lisboa, com uma chegada muito discreta, quase sem familiares à nossa espera porque quase todos que tinham intenções de irem para Lisboa esperar-nos foram informados por telegrama para não irem, porque o nosso regresso tinha sido adiado e sem data marcada.
Chegado a casa e depois de todos aqueles abraços e beijos a festejarmos o meu regresso, foi tempo, nos dias seguintes, de ir visitar os restantes familiares e amigos e desfrutar este mar maravilhoso na praia de Matosinhos, praia onde passei a maior parte da minha infância e mocidade, praia esta que ao seu lado tem o porto marítimo e de pesca de Leixões, onde os seus barcos saem ao anoitecer para a faina de pesca, e onde, pela manhã as mulheres dos pescadores tinham por hábito irem sentar-se na praia viradas para a entrada do porto esperando que barco onde o seu marido trabalhava regressasse da fauna da pesca.
E cada barco era conhecido por um pormenor, que ao longe só elas reconheciam. Depois dirigiam-se para o cais de descarga, levando-lhes o pequeno-almoço.
Como de costume após a chegada do ultramar desfrutava-se um mês de férias, para aqueles que podiam, porque infelizmente alguns, por necessidade iam logo trabalhar, nem tinham tempo para descansar a cabeça, eu felizmente tive a possibilidade de desfrutar até mais que um mês e sempre que podia ia até à praia caminhar, saboreando aquele cheiro da maresia e relaxando com o ondular daquelas ondas calmas da praia de Matosinhos.
Entretanto havia uma mulher vestida de negro que sempre que eu ia caminhar junto à praia lá estava, e enquanto as outras mulheres após a chegada dos maridos iam saindo da praia aquela mulher ali permanecia até tarde.
A mulher do pescador quando de luto, usava um lenço negro que punha na cabeça e cobria grande parte da cara, o que tornava difícil identificá-la ao primeiro olhar, mas a minha curiosidade foi mais forte que eu, e pouco a pouco fui passando mais próximo para tentar descobrir de quem se tratava, e para meu espanto, aquela mulher era a mãe de um soldado português que tinha morrido no ultramar bem próximo de Mueda em Moçambique, foi meu amigo de infância, tinha embarcado no mesmo dia, no mesmo barco que eu, só que ia em rendição individual, fez a picada de Porto Amélia até Mueda com a nossa companhia, esteve em Mueda alguns dias à espera da companhia porque esta ia rodar para uma zona melhor, pensavam eles, e todo este tempo sempre que podia estava com ele, entretanto a companhia onde ele foi integrado passou por Mueda e ele lá seguiu com ela para o tal lugar que eles pensavam que seria melhor que o buraco onde tinham estado.
Os meses foram passando sem que eu tivesse notícias deste amigo de infância, até que aquele dia fatídico chegou.
Estava eu e o meu grupo de combate, nesse dia, de segurança às Águas quando se começou a ouvir o barulho dos hélis a aproximarem-se de Mueda vindo da direcção onde se encontrava a companhia do meu amigo de infância, olhando para os hélis, algo estranho senti, uma dúvida se levantou que me levou a perguntar a mim mesmo: -Será que…? - Tentei esquecer, porque não tinha nenhum indício de quem se tratava e do que se tratava, mas como as más notícias correm depressa, rapidamente soube que tinha sido uma viatura que pisou uma mina anti carro e que a rebentou, originando mortos e feridos graves.
A notícia de que havia mortos preocupou-me, pelo algo estranho que senti quando os hélis estavam a passar por mim, minutos antes. Tendo um bom relacionamento com o 1º sargento do hospital, na primeira oportunidade que tive fui pedir-lhe que me deixasse ver os nomes dos feridos e dos mortos que tinham dado entrada naquele dia, na esperança de não encontrar lá o nome do meu amigo.
Foi um choque enorme, um nó na garganta, uma raiva. Foram mil e um pensamentos e palavrões que dirigi naquele momento aos autores da morte daquele meu amigo de infância, quando li o seu nome na lista dos mortos.
Pedi para ir ver o corpo mas não foi possível, porque tinha ido para a casa mortuária e esta já se encontrava fechada.
Bastante abalado fui para a flat escrever um aerograma a uma pessoa amiga e vizinha dos pais do falecido, aerograma que levaria, em média, quatro a cinco dias a chegar ao destino, pensando eu, que quando o aerograma chegasse, os pais já eram conhecedores da morte do filho, e aquele aerograma seria a explicação de como aconteceu, o que, segundo a informação que me deram, com a explosão, foi projectado, e ao cair, bateu com a cabeça numa pedra e teve morte imediata. Só que o aerograma chegou no mesmo dia que os dois telegramas que foram enviados aos pais, o primeiro da parte da manhã a dizer que o filho tinha sido gravemente ferido e o segundo da parte da tarde a dizer que não tinha resistido aos ferimentos e tinha falecido.
A pessoa amiga a quem escrevi, quando chegou a casa depois de um dia de trabalho, deparou com os vizinhos aos gritos e com os pais em pranto pela morte do filho, esteve um pouco junto deles e foi depois para casa, onde só então viu na caixa do correio o meu aerograma. Diz-se que as más notícias correm velozes, mas quando chegam todas ao mesmo tempo, fazem pensar que o destino é demasiado cruel.
Passados mais de ano e meio após a morte deste meu amigo vou encontrar a sua mãe ali sentada na praia olhando para o mar dia após dia, achei que deveria ir falar com ela para a confortar um pouco, porque ela sabia que o seu filho tinha ido comigo para o ultramar e que tinha estado comigo em Mueda, mas para mim estava a ser difícil. Como seria o início da minha conversa com ela? Lá comecei por lhe perguntar se tinha algum familiar a andar ao mar, ao que me respondeu que não; deu-me um grande abraço e beijos de satisfação por me ver, sabendo que eu tinha chegado recentemente do ultramar. Aproveitando aquela satisfação de me ver perguntei-lhe:
- Então porque vem todos os dias aqui para praia?
A resposta foi rápida, e deixou-me por momentos sem palavras:
- Venho para aqui esperar pelo navio que levou o meu querido filho para o ultramar e que o há-de trazer de volta para os meus braços.
Sem palavras e sem saber o que fazer, lá encontrei forças para continuar a conversa dizendo-lhe:
- Mas já trouxeram o seu filho porque... - Ia dizer-lhe que o filho já tinha falecido há mais de ano e meio, mas ela interrompeu-me: - Dizem-me que o meu filho já veio, mas não acredito, porque ele quando partiu para o ultramar prometeu-me que voltaria para me abraçar, e já lá vão mais de dois anos e ele não voltou para os meus braços.
Quantas mães depois de terem perdido os seus filhos na guerra do ultramar se sentaram à porta de casa, ou aguardaram num caminho, numa estrada, olhando para o infinito na esperança que o seu querido filho aparecesse com as malas nas mãos a correr para os seus braços? Como a mãe daquele meu amigo… Uma espera em vão, porque o seu filho estava morto e enterrado.
Será que esta mãe, agora já falecida, teria encontrado o seu querido filho na outra vida, e tê-lo-ia abraçado fortemente conforme desejou enquanto viva?
Este meu amigo não deixou apenas uma mãe sem o filho, deixou também uma filha sem o pai, que nunca o haveria de conhecer, pois que quando este embarcou para Moçambique deixou a mulher grávida de poucos meses.
A guerra faz com que tantas desgraças juntas levem a pensar que o destino é mesmo demasiado cruel.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011 | 17:41

A Viagem

O dia menos desejado chegou, era por volta das cinco, seis horas da tarde que as Berlliet e as Peugeot começaram a chegar e a ficarem alinhadas umas ao lado das outras, lá na parada do Quartel da Barra, já com a frente virada para portão de saída.
Todos sabíamos que ainda era cedo, mas elas já ali estavam esperando por nós, se alguns já tinham as malas e os sacos prontos outros acabaram por dar mais um jeito nas suas coisas, porque dentro de poucas horas iria dar-se o início da viagem para Moçambique.
À hora de jantar, a vontade de comer era pouca mas tínhamos que comer, porque íamos ter uma viagem de comboio durante toda a noite, era longa a viagem, e era necessário levar o estômago cheio.
Após o jantar e um pouco de descontracção, chegou a hora da formatura já com as casernas abandonadas porque as malas já se encontravam nos camiões. Lá fomos para a formatura para nos desejarem boa sorte. Após o destroçar, começámos a dirigir-nos para os camiões, mas com pouca vontade de para eles subir, porque todos tínhamos a consciência que a partir daquele momento se iria dar o início da viagem para o inferno.
A viagem do Quartel da Barra em Viana do Castelo até á estação dos caminhos-de-ferro foi curta, porque ficam perto um da outra. Pouco a pouco fomos descendo das Berlliet e das Peugeot, e com as malas e os sacos pendurados nos ombros, lá fomos caminhando devagar para dentro da estação, para encararmos aquele comboio ali parado á horas, esperando por nós. Quase se podia imaginar nele um ar sínico, como quem gozasse connosco; mas para ele era-lhe indiferente porque a sua função era levar-nos para Lisboa, e desde que até lá nada de mal nos acontecesse, assim ele se livraria de responsabilidades.
Já dentro do comboio e antes de este começar a andar, comecei a notar algo diferente em relação a outras viagens de comboio que tinha feito enquanto militar. Recordo-me que quando ia para a Estação de Campanhã no Porto, para apanhar o comboio da meia-noite, ou o das onze horas, que eram comboios militares, notava um ambiente descontraído, alguns bebiam bastante cerveja e tocavam viola – e a muito mais coisas se assistia naquela Estação de Campanhã – mas nesta viagem nada disso se passava; embora se compreenda, que o motivo da viagem era outro, os militares muito pensativos. Só Deus sabe se alguns até iriam a rezar naquele início de viagem, que sabíamos seria longa mas não sabíamos se teria regresso.
Mas não só isso se notava; notava-se algo mais, mas mais pesado que não sei descrever… sei lá! Talvez fosse a morte a fazer a sua escolha já ali no comboio dos que iriam morrer e não fazer a viagem de regresso.
Foi uma viagem feita de noite, uma noite muita escura. Foram horas de viagem que dariam para pensar em muitas coisas, mas naquelas horas não se deve ter pensado em muitas coisas, porque o que nos ocupava a mente era aquela viagem mesmo, e o que seria de nós depois que ela terminasse quando chegássemos a Moçambique. Foi uma viagem sempre pensando no mesmo. As horas foram passando, o comboio foi andando e lá chegamos a Lisboa.
Fomos para o Cais do Sodré. Aí, foi mais um reviver a despedida dos nossos familiares que tínhamos deixado em casa e que se sabíamos que não estariam ali.
Ao verem tantos militares com os seus familiares e a chorarem, os que não tinham ali as suas famílias fugiam para um lugar onde pudessem estar sós para dar livre curso a mais umas quantas lágrimas e fumarem mais um cigarro, desejando que a família também lá estivesse para mais um abraço, um beijo, um adeus. Em casa, quando da despedia da família, quantos disseram que não era necessário irem a Lisboa, imaginando que seria sofrer duas vezes, mas aqueles que estavam ali com a família mais uma vez, mais uma vez sofreram e mais uma vez fizeram sofrer.
Depois dá-se aquela imagem a que já estávamos habituados a ver na televisão, que era a subida pelas escadas para o barco com as malas e os sacos às costas, que no nosso caso era para o navio Niassa, com a convicção que a viagem para o inferno não começava ali, pois que já tinha começado em Viana do Castelo, e que, quando iria acabar é que ali não se podia saber.
Já dentro do navio e com as malas e os sacos guardados, lá nos juntamos todos para mais uma vez dizermos adeus, alguns aos seus familiares, outros como não tinham lá a sua família, diziam adeus ao cais, à terra firme, àquilo que fora a sua vida até ali, a que davam um nome só: Portugal.
Depois, cada um como podia tentava mostrar aos outros que estava ali forte para enfrentar fosse o que fosse, mas só Deus sabe como cada um passou aquela primeira noite a bordo do Niassa.
A primeira de vinte e oito noites nos porões do Niassa nas condições mais degradantes que se podiam dar a um ser humano, quando, mobilizado para a guerra em África, o que precisava no mínimo era de um pouco de bem-estar.
Foram vinte e oito noites a sobreviver naquelas condições, e que noite após noite se iam agravando; uma viagem que para muitos teve regresso e para outros não, viagem igual a tantas outras que foram feitas durante o período da guerra colonial, que hoje recordo, talvez por saber as condições que hoje os nossos militares têm, quando naquela altura não éramos mais que carne para canhão.
Quando passo por um camião com animais para o matadouro vem-me sempre á memória aquela viagem onde homens, filhos do povo feitos soldados, feitos militares do exército português a que nos orgulhámos de ter pertencido, foram tratados assim mesmo, como animais a caminho do matadouro.

quarta-feira, 3 de março de 2010 | 17:31

O Rapaz de Aveiro


Estávamos em Janeiro de 1971, provavelmente nos cruzamos na parada, ou no bar dos recrutas do R.I.7 em Leiria, até os nossos pelotões, quem sabe, se cruzaram, só que eu passado três semanas segui para as Caldas da Rainha para o curso de sargentos e ele lá ficou.
Passados vários meses e ainda no ano de 1971, só que agora no mês de Novembro já em Viana do Castelo, de vários rapazes que nos foram apresentados lá estava o rapaz de Aveiro, que era um dos quatro enfermeiros que iam fazer parte da CART. 3503.
Em Fevereiro de 72, chegados a Moçambique, precisamente a Mueda o rapaz de Aveiro foi colocado no meu pelotão. Das constantes saídas para a picada e para o mato, que nos deu a conhecer a maravilhosa beleza do planalto de Miteda, mais conhecido pelo planalto dos Macondes, nasceu uma amizade – não uma amizade de estarmos todos ali a defendermo-nos uns aos outros – mas aquela amizade que permite partilhar os bons momentos e desabafar os maus.
No mês de Maio de 72 fui evacuado para Nampula por motivos de saúde e no período que estive no H.M.N. até á 3ª semana de Junho, muitos azares teve a CART. 3503. Tivemos mortos e feridos graves, de entre eles o nosso autor do Cacimbo, que foi ferido gravemente. Hoje ainda recordo aquele dia em que estava no Hospital com a noite a entrar, quando se ouviram os hélios a fazerem-se ao heliporto do Hospital Militar de Nampula e as ambulâncias para lá a dirigirem-se, até que ouvi alguém dizer: "São de Mueda da 3503." Foi uma punhalada que senti no coração, corri para a entrada das urgências para tentar ver alguma coisa, mas ali nada vi, corri tudo que me foi possível, até que na enfermaria dos sargentos através da janela da porta o vi a ser transportado pelos soldados maqueiros de um lado para o outro, sem saberem em que cama o iriam deixar, estando todo nu, com a perna onde foi ferido gravemente a baloiçar. Estava a passar por uma nova situação na sua vida, e com a qual,por certo ainda não sabia como lidar.
Voltei-me para trás porque não me deixaram entrar, quase com as lágrimas a rebentarem, mas ali não podíamos chorar porque dávamos parte de fracos, caminhei um pouco e quando voltei para espreitar de novo e tentar falar com ele, ele já lá não estava, porque não era para aquela enfermaria que tinha que ir mas sim para os Cuidados Intensivos.
Regressado a Mueda logo no dia seguinte fui heli-transportado para Muera onde estava a decorrer uma grande operação. Se à ida para lá tivemos bastantes azares, no regresso, no que respeita a feridos nada tivemos, embora uma viatura tivesse rebentado uma mina anti-carro. O que é certo, é que correu muito bem, comparado com a ida, não pelo facto de eu lá estar, ou quem sabe, talvez sim. Porque é que digo isto? É que passados estes anos todos cheguei à seguinte conclusão: enquanto estive activo em Mueda só tivemos dois feridos graves, o primeiro logo no princípio, éramos chequinhas, e o segundo e último da companhia, já velhinhos e no mata-bicho.
Os restantes feridos graves, tal como os mortos foram todos na minha ausência quer quando estava em Nampula quer nos períodos de férias em que me ausentei de Mueda.
Durante estes períodos não sei qual foi a actividade do rapaz de Aveiro que era enfermeiro, com a missão de socorrer os companheiros, o que eu sei é que era um rapaz muito seguro de si, mas algo de estranho começou a passar-se com aquele rapaz, recordo-o a refugiar-se na leitura, não deixando de ser um bom camarada de guerra.
Chegou o dia em que foi graduado em Furriel, passando a ser um atirador e não um enfermeiro. Se bons amigos éramos enquanto ele era enfermeiro mais amigos ficámos agora que tínhamos o mesmo posto e que partilhávamos um quarto na flat dos Furriéis.
Com o tempo a não querer passar, onde se contavam os minutos e segundos que faltavam para sairmos de Mueda, à noite refugiávamo-nos na escrita para a família e madrinhas de guerra que se arranjavam através da revista plateia. Só que naquela noite o rapaz de Aveiro disse-me: "Hoje vai ser para a leitura, bebida e tabaco, queres acompanhar-me?" Eu respondi que não, o mais que podia ser era fazer-lhe companhia enquanto escrevia para a família e madrinhas de guerra, mas que quando acabasse iria dormir.
Entre ler e escrever a coisa deu até à uma da manhã, mas para ele não era nada pois que já tinha destinado que naquela noite iria meter abaixo nada mais nada menos que uma garrafa de brandy 1920, acompanhado com tabaco e alguma leitura.
Infelizmente, mais algumas vezes repetiu esta dose, porque para este rapaz esta era a única hipótese que via para sair daquele inferno em que vivíamos.
Este rapaz de Aveiro que numa noite bebia o conteúdo de brandy de uma garrafa de 0.75 e só se deitava quando via a garrafa vazia não tinha mais que 22 ou 23 anos.
Era para isto que os senhores da guerra nos roubavam às nossas famílias, para morrermos com um tiro, com uma mina, ou então para morrermos aos poucos com os maus tratamentos que dávamos ao nosso corpo quando estávamos na flor da nossa idade, porque o nosso pensamento era que mais dia menos dia, podia chegar o nosso dia…
E assim iríamos consolados.