Histórias da CART 3503

Para denunciarmos, para perdoarmos, mas para jamais esquecermos!

sexta-feira, 13 de abril de 2007 | 11:21

Chegada a Mueda



6 de Fevereiro de 1972, Porto Amélia

Vista do barco uma baía linda, enorme e a cidade a subir a partir do cais. Fomos saindo do barco de olhos bem abertos e sentidos alerta à espera da guerra e de súbito uma recepção inesperada e ensurdecedora abateu-se sobre nós. Formando duas filas por onde nós teríamos que passar, grupos de homens sujos, roupas em farrapos, cabelos e barbas compridos, olhos esbugalhados e parecendo deitar sangue, gritavam e saltavam como loucos à nossa volta, abraçando-nos e chamando-nos checas. Eram os elementos que sobravam da 2730, companhia que íamos substituir.

Madrugada seguinte, noite escura, os motores de dezenas de viaturas a aquecer pareciam chamar-nos e cada um de nós, de sacos às costas e arrastando as malas com uma mão, enquanto a outra se habituava ao peso da G-3, tentava encontrar a viatura que o levaria à guerra.

Depois de quase um mês de barco viajávamos agora em camiões, o 1° dia sempre em alcatrão parecia desmentir tudo o que nos tinham dito, afinal não era assim tão mau. Mas ao chegarmos a Montepuêz onde pernoitámos, começámos a ter uma ideia mais real do que nos esperava. As conversas com os velhinhos de Montepuêz não nos auguravam nada de bom e fizeram com que a noite fosse mal dormida e os sonos muito agitados. Pelas 5 horas da manhã já estávamos novamente em andamento, agora já não havia alcatrão, antes uma picada muito estreita e em muito mau estado.

Segunda noite em Nairoto, depois Moirito e na 4ª noite dormimos pela primeira vez na picada. Noite escura, o corpo bastante cansado, mas as histórias ouvidas em Montpuêz não saíam da minha cabeça, de repente tiros. Depois mais tiros. Tentei pegar na arma mas não a encontrei, pois estava deitado na cabine do camião e a arma ficara algures debaixo de um dos bancos. Quando por fim a consegui encontrar a guerra tinha acabado. Mais uma noite, desta vez em Nancatári e eis-nos finalmente a atravessar as Bananeiras, zona mítica de que já nos tinham falado como a mais perigosa antes de chegar a Mueda. Aqui, um grande ataque inesperado e diferente, tão diferente que apesar de todos os treinos em Portugal, ninguém nos tinha preparado para este. Um enxame de abelhas africanas que terá sido incomodado por alguma das nossas viaturas resolveu vingar-se e cada um fugiu como pode, os que não tiveram tempo chegaram a correr perigo de vida e foram evacuados de helicóptero para Mueda.

Recompostos, seguiu a coluna enfrentando agora novas dificuldades, as chuvas tinham deixado a picada em péssimo estado, pelo que o avanço das viaturas era extremamente difícil.


12 de Fevereiro de 1972, Mueda

Finalmente, as primeiras viaturas entraram em Mueda em 12 de Fevereiro de 1972 e as restantes no dia 13.

À entrada uma grande placa de madeira dava-nos as boas – vindas

quinta-feira, 12 de abril de 2007 | 01:43

Prefácio

De Penafiel a Mueda, do Tejo ao Rovuma, do lar ao fim-do-mundo, da inocência ao inferno se fez a história da Companhia de Artilharia 3503.

Cada um dos seus homens tem muitas histórias para contar, trazem-nas consigo há muitos anos; alguns querem guardá-las em silêncio consigo, como algo de íntimo e intransmissível, por acharem que uma vez verbalizadas se tornariam banais, e os sentimentos que lhes estão associadas desbaratados por quem não sabe o que significou negociar com a Morte dia-a-dia de arma na mão. Hoje as guerras são espectáculo de fogo-de-artifício, em directo na televisão, que é visto à hora do jantar no recato do lar, como qualquer reality-show, e a comparação da guerra que conhecemos com esse espectáculo seria degradante para as nossas memórias. É por isso que devemos respeitar os que optam pelo silêncio.

Este blog foi criado para os que não optaram pelo silêncio. Nele caberão todas as palavras que os veteranos da Cart 3503 ainda trazem consigo, mas não tenhamos ilusões; as palavras não são os factos e nem sequer os sentimentos; são apenas códigos de comunicação com que temos a ilusão de dizer a verdade, e não haverá dois de nós a dizer a mesma coisa do mesmo modo. É por isso que devemos respeitar os que optam por dizer o que pensam.

Outros, por ventura, optarão por retratar os sentimentos, assumindo a inutilidade de tentar repetir a realidade, aceitando o papel da memória que umas vezes censura outras vezes interpreta a informação modificando-a; a ilusão aqui não é menor, é apenas assumida. É por isso que devemos respeitar os que optam pela ficção ou pela poesia.

Foram repostos os textos do Silvestre, do Caseiro e do Almeida que eu já tinha publicado no meu blog "Outros Testemunhos", bem assim como os comentários dos visitantes.

Para agilizar a publicação dos textos e para garantir alguma organização, encarregar-me-ei de administrar o blog, garantindo que não existirá qualquer censura ou truncagem do que me for enviado para publicação.

Só não haverá lugar à calúnia, à pornografia e à mentira maldosa; porém a indignação, a sensualidade e a fantasia serão bem-vindas; que nenhuma palavra até hoje reprimida fique por dizer, nenhuma acusação justa por fazer, e que o perdão, que é a vingança dos magnânimos, seja a prova da nossa superioridade moral.

Houve uma guerra. Nós lutámos lá; nós morremos e matámos lá.

Para denunciarmos, para perdoarmos, mas para jamais esquecermos!

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