Histórias da CART 3503

Para denunciarmos, para perdoarmos, mas para jamais esquecermos!

sexta-feira, 16 de novembro de 2007 | 15:17

O Preço do Pão


Foto de Manuel Bastos

Olhei para o relógio, eram 10 horas da manhã do dia 31 de Dezembro de 1973 e ali íamos nós a caminho das Bananeiras, uma dúzia de viaturas e cerca de sessenta homens, privilegiados, que tínhamos tido o bónus de ir passar a passagem do ano às Bananeiras, o pretexto era arranjar a ponte para que a coluna, que no princípio do ano viria de Porto Amélia, conseguisse chegar a Mueda .
Isso era o pretexto, pois a finalidade principal era afastar de Mueda a maioria dos homens da 3503, companhia que em Janeiro faria 24 meses de comissão, e em que a insatisfação e até mesmo a revolta já grassava tanto entre os graduados como entre os soldados.
Assim, a caminho das Bananeiras, zona a 15Kms de Mueda, famosa pelas emboscadas aí já acontecidas e pelas minas normalmente aí colocadas, seguiam cerca de 40 homens da 3503 mais 20 e tal homens da engenharia com algumas máquinas. Os atiradores tinham por missão montar a segurança e fazer a protecção aos homens da engenharia enquanto durassem os trabalhos do arranjo da picada e da reconstrução da ponte. Comandavam esses homens, o capitão Almeida e o alferes Silvestre, ambos da 3503, que por diversas vezes tinham levantado a voz em defesa dos homens da companhia e portanto não era conveniente estarem em Mueda no dia 1, onde estava previsto haver um almoço de Ano Novo com algumas individualidades vindas de Nampula, de Lourenço Marques e talvez até algum ministro da Metrópole, os quais faziam o sacrifício de nesse dia se deslocarem às zonas de guerra para, diziam eles, levantar o moral das tropas, algumas das quais já há quase 24 meses ali se encontravam.
Para evitar que Suas Excelências apanhassem algum susto enquanto estivessem em Mueda, a maioria das tropas operacionais eram colocadas no mato, quer em patrulhamentos afastados quer alguns próximos do arame farpado, de modo que os combatentes da Frelimo se mantivessem o mais longe possível e sem possibilidades de efectuar qualquer ataque.
Assim, além destes homens, outros elementos da 3503 e de outras companhias, foram colocados no mato em defesa afastada de Mueda e também esses estavam portanto impedidos de incomodar as altas individualidades.
Voltei a olhar para o relógio, era meio-dia e avistávamos finalmente a ponte das Bananeiras onde já se encontravam os homens de Nancatári que nos vinham reforçar enquanto durasse a nossa permanência ali.
A companhia de Nancatári, a 3501, companhia do nosso batalhão, formada juntamente com a nossa dois anos antes em Penafiel, era portanto constituída por amigos comuns, alguns das mesmas terras da Metrópole e que embora a apenas 28Kms de distância, as circunstâncias não permitiam que se vissem há muitos meses. Os abraços foram muitos e durante alguns minutos contaram-se histórias e recordaram-se amigos já desaparecidos.
De Nancatári tinham vindo dois pelotões, um que ficaria connosco e outro que regressaria a Nancatári imediatamente, pois o aquartelamento distava apenas 12Kms e como todo o trajecto tinha sido picado nessa manhã, decerto não tinha havido tempo para os homens da Frelimo colocarem novas minas. Mas nessa noite era a noite de passagem de ano, pelo que ficou combinado que logo de manhã um grupo comandado pelo Capitão Almeida que não conhecia Nancatári, iria a esse aquartelamento buscar pão mole, algumas bebidas e talvez mais qualquer iguaria que nos ajudasse a passar melhor o dia de Ano Novo no mato.
Depois deles partirem ali ficámos nós, a pensar que na Metrópole a maioria das pessoas da nossa idade estavam preocupadas com o local onde iriam passar o reveillon ou com o que levariam vestido e nós ali, preocupados em organizar a defesa para o caso de nessa noite sermos atacados.
Quando o sol se pôs e se fez noite, já instalados debaixo das viaturas ou em valas, cada um de nós bem abastecidos de bebidas que tínhamos trazido para a ocasião, resolvemos festejar, e uns sozinhos e em silêncio, outros em pequenos grupos, fomos bebendo e pensando na Metrópole, bebendo e pensando na Metrópole, pensando na Metrópole e bebendo, até que à meia noite nos esquecemos onde estávamos e alguns mais efusivos resolveram mandar algumas granadas e alguns tiros para o ar, fazendo dessa forma com que alguns animais da selva soubessem pela primeira vez nas suas vidas que aquela era a noite de passagem de ano .
A pouco e pouco os corpos foram cedendo ao cansaço e o sono tomou conta da maioria dos homens, apenas os que estavam de sentinela tinham que esperar de olhos bem abertos a sua vez de serem substituídos por outros nessa tarefa.
Seis e meia da manhã, uma vintena de homens preparavam-se para ir a Nancatári , quando um rebentamento muito próximo nos fez tomar consciência que, dia de Ano Novo ou não, estávamos na guerra e estávamos a ser atacados. Ao segundo rebentamento apercebemo-nos que tudo se passava a dois ou três Kms de distância, o que confirmámos imediatamente a seguir quando começámos a ouvir as kalashs da Frelimo e a resposta de algumas G3. Alguém gritou : devem ser os homens de Nancatári que nos vêm trazer o prometido pão quente.
Imediatamente os homens que já estavam preparados para ir a Nancatáti saltaram para cima das viaturas e sob o comando do Capitão Almeida arrancaram picada fora nessa direcção. Passados dois ou três Kms depararam-se com uma situação dramática de meia dúzia de homens a tentarem sobreviver e a defenderem-se estoicamente a si próprios e a cerca de uma dezena de companheiros que bastante feridos não estavam em condições de o fazer. A Frelimo durante a noite tinha montado um fornilho ( várias minas ligadas entre si ) e preparado uma emboscada para atacar os elementos que sobrevivessem às minas.
Eram uma dúzia e meia de homens que lutavam pela vida, heróis anónimos, que tinham arriscado, voluntariamente as suas vidas para levarem aos seus camaradas no mato o tão prometido pão mole e mais alguns mantimentos.
A chegada de reforços impediu que a Frelimo levasse até ao fim os seus intentos, mas já não impediu vários homens de perderem a vida e outros de ficarem feridos com mais ou menos gravidade.
O pão, esse não me lembro se chegámos a comê-lo, mas foi sem dúvida o pão mais caro de que alguma vez tive conhecimento. Não pagámos em escudos nem em qualquer outra moeda, pagámos em sangue e em vidas, pois o preço final saldou-se por 4 mortos e 8 feridos .
Entretanto em Mueda as tais altas individualidades tiveram direito ao seu almoço com as tropas, tendo ao fim do dia partido novamente de avião para as suas comissões em terras do Sul, sem qualquer perigo de minas ou de emboscadas.

Partiam contudo com as consciências tranquilas, pois já podiam dizer que tinham passado um dia em zona de guerra e tinham voltado sãos e salvos. Quem sabe, até talvez tivessem direito a mais uma condecoração.
Entretanto no mato, onde ainda ficámos vários dias, não voltámos a ser reabastecidos, pelo que nos restantes dias comemos sempre pão duro.