Histórias da CART 3503

Para denunciarmos, para perdoarmos, mas para jamais esquecermos!

sábado, 21 de janeiro de 2012 | 00:07

Bananeiras

As Águas - Mueda
Foto retirada daqui e posteriormente editada.

Dizia o Furriel Manuel Bastos, e digo eu, furriel na guerra, furriel para toda a vida, num seu recente texto, publicado no “site” Cacimbo, que “nunca regressamos de África”.
É verdade, de África e da Guerra, tomo a liberdade de acrescentar.
Precisamente, por estes dias finais de mais um ano, já lá vão 38, Mueda fervilhava de agitação, preparando um mega-almoço, especialmente abastecido por uma aeronave propositadamente contratada para o efeito, vinda de Nampula, bem carregada de comes e bebes, que reuniria no 1º dia do ano de 1974 as designadas figuras militares, politicas, sociais e religiosas, de Lourenço Marques e de Nampula.
Pretendia-se com a realização de tal evento mostrar ao mundo que Portugal estava bem presente naquelas paragens, ao contrário do que os jornais, estrangeiros, claro, noticiavam, acerca da luta travada no terreno.
Aproximava-se, pois, o fim do ano, com o Natal já passado, e eu ainda a recuperar do paludismo que me havia atirado para a cama uns dias antes da noite de consoada.
Felizmente, até então, não havíamos sofrido o sempre esperado ataque dos “terroristas”, o que fazia antever um possível bombardeamento pela entrada do novo ano, já que dificilmente escaparíamos á tradição das boas vindas que por esta altura do ano a FRELIMO sempre presenteava as forças portuguesas, naquelas paragens.
E, eis que, ainda abalado pela crise de paludismo, fui chamado ao comando, onde me foi comunicado que, uma vez que tinha já alta médica, fora nomeado, aliás, como a companhia 3503, para comandar uma coluna, responsável pela protecção a uma obra cometida à engenharia.
Exactamente, foi-me comunicado, melhor, ordenado, que a partida da coluna seria na manhã do dia 31, isto é, no último dia do ano.
A Cart 3503, além do capitão e responsável pela operação, forneceria um alferes, que calhou ser o Silvestre, dois ou três furriéis e uns vinte e poucos soldados. O restante pessoal seria da engenharia.
A Cart 3501, de Nancatary, enviaria ao nosso encontro um número idêntico de homens, que se juntariam a nós como reforço á operação com vista à construção de uma ponte, nas Bananeiras, assim se designava aquele local, no meio do mato, sobre um pequeno riacho, que substituiria uma outra há muito destruída pelos guerrilheiros e por onde era suposto passar uma coluna de abastecimento, vinda de Nampula.
A escolha do alferes Silvestre, pese a sua recente alta médica, decidida no Hospital de Nampula, culminando um processo de tratamento e recuperação demorado, após violentos ferimentos sofridos, que o colocaram às portas da morte, muitos meses antes, dizia, a sua escolha para me acompanhar resultou de uma pequena reunião entre nós os dois e o outro alferes da companhia, o Silva, por todos tratado por Silvita.
Face à necessidade de nomear um deles, vi-me perante um dilema, tomar uma decisão entre um, o Silvestre, que não se entendia como era possível, atento os graves ferimentos sofridos e o calvário que passou pelos hospitais, incluindo com evacuação para Portugal e, agora regressado ao mesmo teatro de guerra, por um lado e, por outro, o Silvita, que vinha, quase ininterruptamente, assegurando a realização das operações que a companhia era permanentemente obrigada a realizar, sem que estivesse dotada dos meios humanos mínimos para tal, não só de oficiais como de soldados.
Então passei-lhes “a bola” e eles que decidissem entre ambos qual seria o que me acompanharia na operação. De imediato, o Silvestre disse que teria de ser o capitão a escolher. Também, sem perda de tempo, decidi que seria ele próprio a participar na coluna.
Os demais militares que ficavam em Mueda, fossem os “aramistas”, ou o que restava dos atiradores, também decidiram que não participariam no previsto mega-almoço, e dessa forma solidarizavam-se com aqueles que partiam para o mato.
Para o efeito, de modo a evitar represálias, uns juntar-se-iam ao grupo de soldados que estacionavam no acampamento instalado no aldeamento, e os restantes iriam para as “Águas”, fora de Mueda, a uma meia dúzia de quilómetros, onde a companhia mantinha um grupo de quarenta militares, que assegurava o abastecimento de água a Mueda.
Com votos, em surdina, de que Mueda fosse atacada na nossa ausência, lá partimos para as Bananeiras. Berliets carregadas com os soldados e material necessário a uma estadia que se previa de vários dias, além de toda a maquinaria da engenharia.
Pequena paragem na picada, no desvio para as Águas, onde largámos dois graduados da companhia de engenharia que, por maldade, haviam sido integrados para realizar aquela operação, apesar de terem chegado a Mueda, vindos de Portugal, dois dias antes. Estavam assustados, como era normal, para quem pela primeira vez, e mal acabados de chegar, se viam numa situação daquelas. Entre risos e bocas foi-lhes explicado que não era mais que o cumprimento de uma, digamos, praxe, que em Mueda se fazia passar aos “chekas”.
Aliviados ficaram nas Águas e nós lá prosseguimos o nosso destino, agora com cautelas redobradas, picando os rodados por onde passariam as viaturas. E, deste modo, ao som dos motores das viaturas em marcha lenta, fomos percorrendo a picada que ligava Mueda a Nancatary, via Águas e Bananeiras.
Relativamente perto das Bananeiras deu-se o reencontro com os homens vindos de Nancatary. Assim, suspendemos a picagem, já que a picada acabara de ser passada pelos recém-chegados de Nancatary, e mais aceleradamente, já todos quantos iriam assegurar a construção da ponte, rolamos para o local determinado que uma vez atingido, e porque naquelas paragens anoitecia muito cedo, toca a derrubar umas quantas árvores, de modo a melhor instalar o acampamento, atentos todos os dispositivos de segurança.
A queda de uma das árvores acabou por despoletar um enxame de abelhas, que rapidamente se espalhou pelo local tomado pelos militares e começou a atacá-los. O alvoroço de todos e o pânico de muitos, recorrendo a granadas de fumo, às próprias viaturas com os canos de escape a exalar fumos, fugindo para as respectivas cabines ou lançando-se para debaixo das mesmas, foi a forma encontrada para combater um tal “ataque”.
Entre os vários militares picados pelas abelhas um teve mesmo de ser evacuado, atenta a gravidade do seu estado de saúde.
Socorrido por um heli que logo foi chamado de Mueda, o ferido foi evacuado. Logo à chegada, a primeira baixa.
Terminado o ataque das abelhas, que trouxera à memória uma situação semelhante aquando da passagem, exactamente, pelo mesmo local, da coluna que trouxera, em 1972, muitos daqueles homens para Mueda e onde sofreram logo, num ataque, também de abelhas, a evacuação do seu primeiro elemento, um dos alferes, que não voltou mais à companhia. Mau agoiro, pensaram muitos.
Agora, todos ao trabalho, na montagem e organização do acampamento, com especial incidência na manutenção da segurança, porque a tarde apressadamente ia desaparecendo e a noite, a “noite de fim de ano”, rapidamente se aproximava.
Instalados, caída a noite, foi impossível não recordar passagens de ano anteriores, sobretudo algures em Portugal. Os homens da 3503 que haviam carregado algumas bebidas recolhidas na árvore de Natal que tinham “plantado” na sua camarata, por todos fizeram uma distribuição para que ninguém ficasse sem brindar ao ano que nasceria à meia-noite.
Chovia torrencialmente quando bateu a meia-noite e, desde gritos e vivas, a tiros para o ar, enfim, um barulho em pleno mato, impossível de controlar, foi a forma que os militares estacionados nas Bananeiras encontraram para festejar a chegada do novo ano, aliás, que seria o último para os homens da duas companhias de atiradores ali presentes, as Cart´s 3501 e 3503, tirando um ou outro homem que havia chegado em rendição individual, caso do capitão e que ainda estava no princípio da sua comissão, enquanto os demais, sem contar com o mata-bicho, isto é, mais uns três meses, terminariam a comissão nos primeiros dias, exactamente, do mês de Janeiro que estava a nascer.
Assim adormeceram e devido à chuva que caía intensamente durante a noite, o capitão, como um ou outro militar, refugiou-se na cabine de uma das Berliets, onde acabou por adormecer, já bem bebido, confessa.
Manhã cedo, toca a levantar, uma vez que tudo estava devidamente previsto, os homens da Engenharia dirigiram-se para o local onde iriam edificar a nova ponte, melhor, montar um pontão, e os atiradores das 3101 e 3503, prepararam-se para assegurar a defesa do acampamento e a segurança dos trabalhos a executar pelos “engenheiros”.
O capitão, conforme havia já acordado com o alferes Silvestre, organizava um pequeno grupo para ir a Nancatary, sem avisar, de modo a surpreender o capitão Aveiro, com quem mantinha já fortes laços de solidariedade, e comandante das tropas aí estacionadas, para obter produtos que amenizassem as rações de combate que teriam de suportar durante, como era então previsível, mais de uma semana.
Faziam-se os derradeiros preparativos para a partida, quando um forte rebentamento, seguido de rajadas de armas automáticas, fez parar todos os homens do acampamento e, o capitão, menos apreensivo que ninguém, ainda um “cheka” relativamente aos demais militares que o acompanhavam, alvitrou para quem estava próximo:
- Olha o capitão Aveiro a receber as boas festas dos “turras”!
Um soldado a seu lado, um dos tais velhinhos da Cart 3503, prontamente lhe fez sentir:
- Meu capitão, olhe que não, este rebentamento aconteceu a menos de quinhentos metros daqui.
Instantaneamente reagimos e fizemos a aproximação ao local.
Era verdade, melhor, duas verdades, uma, as “boas festas” da Frelimo, eram uma amarga realidade que o capitão Aveiro e alguns dos seus homens acabavam de receber, e a outra, foi muito perto do acampamento que o ataque se registou.
O comandante da CART 3501 adiantou-se ao capitão da 3503 e, sem que fosse esperado, certamente para provocar uma agradável surpresa, vinha carregado com mantimentos, apoiar quantos se encontravam naquela missão.
Assim ficaram pelo caminho quatro rapazes, na casa dos vinte anos, e que terminariam a sua comissão de serviço, daí a alguns dias, se não tivessem sido abatidos.

Lisboa, final de 2011 e começo de 2012

António Pereira de Almeida, último capitão da CART 3503

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1 Comentários:

Anonymous António Silvestre disse...

Quem pode esquecer Almeida? Este e outros episódios trágicos ficaram marcados nas nossas memórias para sempre.
Não há uma passagem de ano que eu não pare uns minutos para pensar naquelas horas que passámos nas Bananeiras.
Nós tivémos sorte, safámo-nos e hoje estamos aqui para contar o que passámos.
Um abraço do Silvestre.

29 de janeiro de 2012 às 21:21  

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