Histórias da CART 3503

Para denunciarmos, para perdoarmos, mas para jamais esquecermos!

segunda-feira, 24 de agosto de 2009 | 18:10

Mueda, mil vezes nos meus sonhos


Já tinha ouvido falar de ti, Mueda, homens que lá tinham estado antes, falavam de guerra, de ataques, de morteiradas, de helicópteros, de aviões, de medo, de mortos e de feridos.
Mesmo antes de te conhecer já o teu nome me assustava e ao ser mobilizado para Moçambique, logo se apoderou de mim uma ansiedade enorme, será que iríamos para Mueda, talvez não, Moçambique era tão grande que, só com muito azar iríamos lá parar.
Imaginava-te a ser constantemente atacada e com homens de armas na mão junto ao arame farpado, a responderem aos tiros dos guerrilheiros da Frelimo.
Foi ao chegarmos a Lourenço Marques, ainda no barco que recebemos a notícia de que o nosso batalhão iria para Cabo Delgado e a nossa companhia para Mueda.
Logo à entrada fomos recebidos por uma placa nada animadora:

Bem-vindos a Mueda, Terra da Guerra.
Aqui trabalha-se, luta-se e morre-se.
Checa é pior que turra.


Mas tu surpreendeste-me Mueda, tu eras um oásis para nós que vínhamos do mato, cansados, com sede, esfomeados, sujos, feridos alguns, e tu a todos recebias com um sorriso nos lábios, um banho, quando havia água, uma cerveja fresca e o teu aldeamento.
Às vezes o oásis deixava de o ser, era a Hora Maconde e vinha aí um ataque à morteirada, mas até isso nos sabia bem, para que os aramistas e aqueles Chicos que nunca saíam do aquartelamento soubessem o que era a guerra.
Recebeste-me, um rapaz imberbe e amedrontado, mas a pouco e pouco foste-me moldando, ensinaste-me que um homem sozinho não é ninguém, ensinaste-me a amizade sincera, a solidariedade, a união, o espírito de grupo, o espírito de sacrifício, o respeito pelos outros, mas também me mostraste o sofrimento, a morte, a dor e a parte má que há em cada um de nós. Mostraste-me como os homens são capazes dos actos mais heróicos e altruístas, mas também dos actos mais egoístas e cruéis.
Em Mueda fiz coisas que nunca pensei ser capaz de fazer, fiz coisas sem pensar, fiz coisas por medo, por vaidade, mas também fiz outras por amizade, por solidariedade, por amor ao próximo.
Em Mueda fui forte, fui fraco, fui valente, tive medo, matei, morri, chorei, ri-me, cantei, praguejei, comi, bebi, fui feliz. Tantas e tantas vezes fui tudo isso no mesmo dia, só tu Mueda para nos transformares assim.
Durante dois anos conheci todos os teus recantos, o Aldeamento, o AM, o fundo da pista, a messe de Sargentos, a messe de Oficiais, a messe do Batalhão, a caserna da Companhia, o Banco, a Engenharia, a Artilharia, o Pelotão de Morteiros, a Companhia de Transportes, o Esquadrão de Cavalaria, o campo de futebol, os postos de sentinela, as valas, os abrigos, os Filtros, as Águas, as tuas cantinas, o China, o Santos, o Serra, a Sara e até o Hospital e o Cemitério. Em Mueda assisti ao mais bonito pôr -do- Sol que vi até hoje, lá longe no horizonte, por sobre o Vale de Miteda, uma enorme bola de fogo a fugir e a esconder-se do outro lado da Terra, e a noite a cair rapidamente sobre o Planalto dos Macondes.
Também aí aprendi frases que não conhecia: checa é pior que turra, não há psicola, vai para o mato malandro ou fazer máquina.
Já sonhei contigo mil vezes, Mueda, já contei tantas histórias sobre ti e ainda tenho tantas para contar. Como eu, centenas, milhares de homens têm saudades de ti, contam histórias e sonham contigo. Sonham com o teu cacimbo de madrugada, com as colunas a sair para a picada ainda noite escura, com as tuas manhãs enevoadas. Acordam de noite, ouvindo as saídas dos morteiros, o ruído dos helicópteros ou o rebentar de uma mina.
Que fascínio tinhas tu Mueda, que mistérios encerravas, para que homens que aí enfrentaram a morte, ainda hoje, passados tantos anos, falem de ti com tanta saudade, com tanto entusiasmo, com tanto carinho.
Tuas histórias são contadas à lareira, nos cafés, nas tabernas das aldeias, nos restaurantes mais finos das grandes cidades, todos os dias és falada por tantos homens que por lá passaram e nunca mais te esqueceram, o teu céu, as tuas estrelas, o teu amanhecer, os teus dias enormes, os teus ruídos, as tuas ruas esburacadas, as tuas amizades com um copo ao lado, tudo isso está guardado na nossa memória como um tesouro, que de vez em quando visitamos para matar saudades. Saudades enormes Mueda, da chegada do correio, do içar da bandeira, duma visita ao aldeamento, dum salto até ao AM para ver chegar os aviões ou simplesmente de uma conversa noite dentro com os amigos, sem sabermos se seria a última.
E que dizer de uma noite passada com um copo na mão, uma guitarra a trinar e alguém com melhor voz a cantar fados e cantigas da nossa terra, até que já bem noite dentro todos nos sentíamos com voz e coragem para cantar as canções do Cancioneiro do Niassa ou o Fado de Mueda.
Também havia dias bem tristes, quando os helicópteros traziam das picadas ou do mato feridos ou mortos, alturas em que corríamos até ao Hospital, sempre na esperança egoísta de que entre eles não estivessem elementos da nossa companhia. Nessa noite não havia copos, nem cartas para casa, nem sequer conversas, o silêncio tomava conta das flats e das casernas, e cada um sozinho, com os seus pensamentos, tentava resistir o melhor que podia.
Voltaremos um dia, Mueda, agora já não de armas na mão, mas talvez com livros, brinquedos e comida para as crianças, medicamentos para os velhos e um abraço fraterno para todos. Era assim que deveríamos ter chegado aí, há dezenas de anos, mas não nos deixaram. Talvez agora possamos à noite ver as estrelas em silêncio e sem o perigo de um ataque à morteirada, ou talvez possamos sair pela picada fora a caminho das Águas, apreciando em segurança a paisagem, linda, do Vale de Miteda.
Entretanto, vou-te visitando nos meus sonhos, vou falando de ti nos almoços da Companhia ou vou recordando histórias com aqueles, que como eu, te recordam com saudade.
Outras vezes vou vendo algumas fotografias que guardo com carinho e orgulho, e que já me têm dado forças em momentos mais complicados, ao olhar para elas e sentir novamente ao meu lado aqueles velhos companheiros de tantas e tantas lutas.
Foste tu Mueda que me ensinaste a ser, o homem que hoje sou, transformaste toda a minha vida, tenho a certeza que parte do melhor que há em mim foi forjado aí, até por isso tu és especial.
Adeus, até um dia, Mueda dos meus sonhos.

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8 Comentários:

Blogger José Sande disse...

Meu caro António Silvestre,

não estive em Mueda, nem sequer em Moçambique, antes em Cabinda, mas conheço quem tenha lá estado, e em diversas épocas, sendo sempre entusiasmante a forma como falam das suas passagens por essa, diria, 'mítica' terra... não fôsse mesmo a realidade que enfrentaram.
Um grande abraço, e um obrigado, por este magnífico texto.
José Sande

25 de agosto de 2009 às 18:24  
Anonymous Luís Duarte disse...

Meu caro António Silvestre :
Um abraço de um Especialista FAP que andou por esses lados . Muito bem escrito de tal maneira que senti um aperto no coração. No Exército as pessoas eram muito mal tratadas em instalações e comes.Nós quando em missão dávamos uma ajuda .
DTE OPCOM 1ª/65 Moçambique

27 de agosto de 2009 às 07:48  
Anonymous Anónimo disse...

...pois é, Silvestre, MUEDA, marcou quem por lá passou e irá acompanhar-nos até à nossa última morada. Sabes, eramos jovens e estavamos disponiveis para enfrentar todas as dificuldades que lá vivemos e, apesar de tudo, soubemos tirar partido das poucas coisas boas que lá experimentamos, nomeadamente, a solidariedade e a amizade. Um abraço do António P. Almeida, último cap. da 3503

3 de setembro de 2009 às 15:40  
Anonymous Anónimo disse...

Mueda é mesmo como está descrito. Era e é. Já lá voltei. Um Maconde agora com 45 anos, o Simao, tem um quiosque de madeira em frente ao "esquadrao" onde vende refrigerantes frescos... deu-me informaçoes àcerca da Fátima Cão, (faleceu por doença) e da Teresa Maconde (reside junto ao rádio clube de Pemba - Ex-Porto Amélia) quando soube que eu tinha estado em Antadora e vinha muitas vezes a Mueda, mandou chamar um ex-guerrilheiro que tinha estado na Base Inhambane, para falarmos do passado. Noite dentro já o grupo de ex-militares e as famílias tinha jantado, juntei-me de novo à minha esposa, sem jantar - depois de umas dezenas de bazookas repartidas com o "turra" e uma dezena de jovens raparigas com os namorados que sorviam as histórias que os dois antigos combatentes reviveram aos gritos em frente ao esquadrão que agora são apenas os edifícios em mau estado de conservação. É verdade, Mueda -Mueda continua - diferente mas continua! OBS. no bar dos furrieis, agora funciona o posto da Polícia da Republica de Moçambique (RPM). Até sempre, pois quem passa por Mueda fica da nossa família. OBS: Há muito pouca gente do nosso tempo em Mueda.... nós sabemos muito mais de Mueda do que quem lá reside.

16 de outubro de 2009 às 21:30  
Anonymous jose monteiro disse...

Lá estive em 67/68.Voltei novamente
a lá estar com este excelente texto.Está lá tudo o que Mueda é e
representa.OBRIGADO.
José Monteiro
www.batalhaocacadores1916.co.cc

8 de dezembro de 2009 às 19:15  
Blogger oscaruniforme disse...

Fui da Ccav 3559 estive em Antadora 72/74 também um lugar mítico onde convivi com a malta da 503 de Mueda como por nós era conhecida e hoje ao ler este texto a falar de Mueda que também conheci
senti uma emoção imensa ,voltei lá em 2005 a sensação continua a ser a descrita no texto.Realmente aquela terra marcou-nos para sempre.
Bem Hajas

10 de dezembro de 2009 às 21:41  
Blogger Unknown disse...

Amigo Silvestre, te quero dar os parabéns pela magnifica prosa, ela descreve de uma maneira autêntica Mueda e os sentimentos dos que por lá passaram.É natural que já não te lembres de mim, mas embarcamos juntos no Niassa, só que eu fiquei na Beira e só mais tarde fui para Mueda, te envio um link onde podes veres alguns camaradas do BCAÇ 15 e do GE208

http://www.flickr.com/photos/sapador/

Um abraço fraterno

13 de fevereiro de 2010 às 11:53  
Blogger Mário disse...

Deseja contactar com a malta da Cart3501. marfersilva50@gmail.com
os contatos é para fornecer ao Manuel Frreira que pertenceu à Cart. 3501 e náo sabe da malta, ele econtyra-se na Suiça

23 de julho de 2012 às 21:39  

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